segunda-feira, 6 de julho de 2009

Estomago: O Sabor Da Aprendizagem




No seu primeiro longa metragem, Marcos Jorge, nos oferece um filme curioso, um prato pesado (como se diz daquelas comidas saborosas e que nos faz suar ao comer), uma comédia “recheada” de tragicidade, ao focalizar a câmera na trajetória de Nonato, o que o diretor nos faz perceber entre risos, é uma imagem gastronômica das relações de poder. Uma estranha antropofagia, ou melhor dizendo, antropofagia ancestral, como os índios que devoram seus adversários para alcançar-lhes a força. Acompanhando a trajetória de Nonato, percebemos desde os primeiros momentos da sua chegada a cidade grande (Nonato é um imigrante nordestino), todos os desafios que vão se colocando no caminho do mesmo e como ao longo desse percurso o personagem, precisará aprender a melhor cozinhar suas relações e assim conquistar um papel menos subalterno diante dos grupos em que está presente. É também um filme de prisão, porém diferente dos diversos filmes de prisão que se nos dão a ver, aqui a prisão é mais uma extensão da vida livre em sociedade, uma espécie de espaço contíguo da rua. Isso certamente, porque o diretor nos apresenta um equilíbrio desequilibrado no mundo que cerca Nonato, as humilhações, as derrotas e a impossibilidade de reconhecimento – este que ás vezes se insinua, nunca se completando - se comunicam em todas as relações e em todos os lugares, na cadeia, no restaurante, na vida amorosa. Talvez seja esse o ponto trágico do filme, Nonato só vai conseguir adquirir um nome próprio e uma posição fixa, ou pelo menos mais tranqüila, quando deglutir o poder, assumindo assim um olhar igual, uma identificação com os adversários, uma visão precisa dos círculos de poder no qual está inserido. Prova disso é sua descrição da organização na sua cela, auxiliada pela câmera que diagrama as trocas, posições e funções de cada um lá dentro. A história certamente não nos levará a um final nobre e confortador, antes deixa sim um gosto meio amargo na boca do espectador que desavisado, acredita na ascensão por vias da boa índole, do talento ou do bom comportamento do personagem.
De Nonato a Alecrim, o caminho é de uma aprendizagem não só da cozinha, seus temperos e técnicas, mas de uma outra espécie de aprendizagem. Aprendizagem que se entranha no corpo como as proteínas, os cálcios e sais minerais que absorvemos com a alimentação. Alecrim aprendeu que a apresentação do prato tem de ser completa, é preciso dominar não só a cozinha, como também seu poder de persuasão, só pode ser assim, afinal a mera culinária é por demais inofensiva e sempre lhe relegará a posições subalternas. (Isso se confunde certamente com a apreciação da direção segura do Marcos Jorge em sua estréia, ele nos oferece um filme muito bem produzido, sem enfeites ou tentativas mirabolantes de vanguardismos e, no entanto imprime aspectos geniais durante o filme, pequenos detalhes, simplicidade, a arte da grande cozinha.) Culinária esta da qual somos conhecedores, a culinária destas que vemos na TV e que durante o filme é citada pela personagem Iria: “ o programa daquela mulher loira com o papagaio”. Já em sua carapaça de Alecrim, veremos um duplo, talvez triplo personagem, digamos o obstáculo a ser batido: Bujiú. Como os seus antecessores: Zulmiro, Giovanni e porque não a própria Iria, Alecrim terá de conseguir um jeito de vencê-lo. E é então que percebemos, que o diretor alcança a grandeza do seu filme. Se ele nos conta o trajeto de Nonato – Alecrim em flasbacks que intercalam o tempo presente com o passado, inserindo uma diferença nesta técnica, é para nos mostrar como o agradar da comida se converte tanto em ordem subreptícia de dominação, como em força adquirida, mecanismo desvelado para ascensão do chão ao ultimo beliche. Maldade alguma, nenhuma humilhação poderá mais afetar Alecrim, seu saber adquiriu uma potência do ressentimento, por aqueles que lhe dão ordens e lhe impedem de prosseguir tranquilamente, ele se revestiu e o bobinho e ingênuo inicial agora já conhece os meandros para a aceitação e o poder que ele próprio possui. Tudo isso apresentado a câmera sem explicações psicológicas do personagem, apenas por uma descrição dos espaços e suas relações com a comida e com uma narração em off, onde Alecrim complementa a câmera.
De certa forma o filme discute também, mesmo que en passant o papel do professor. Mesmo que apenas um dos personagens se proponha a este papel. Giovanni, italiano grande conhecedor da cozinha e picareta em papel de artista, é quem dará as maiores lições a Nonato, aprender a ver o que esta por trás das coisas, em baixo do vestido, por trás de um beijo ou da recusa deste, uma peça de carne, enfim a interpretar os códigos. Uma interpretação cruel e ressentida da vida, burguesa e porque não, já que ao interpretar limita e condiciona. Aprisiona a possibilidade de outros sentidos, operando uma mesquinhez que o generoso Nonato não irá esquecer. O amor pelo poder é o que Giovanni lhe ensina, algo que Alecrim vai colocar em prática com demasiado sucesso dentro da prisão. Esquadrinhando, cozinhando, seduzindo e por fim impondo já no preparo da ultima refeição que nos é mostrada. Aqui nesta cena derradeira, a transformação de Nonato em Alecrim é definitivamente demonstrada e porque? Porque ainda lhe faltava o poder do esporo, saber colocar cada um em sua posição, na mesma medida em que se re-conhece a sua. Fazer do seu saber elemento da humilhação do outro, subjugando pelo conhecimento, um pouco como Ulisses subjuga a força do ciclope. O rosto transformado não tem mais os olhos arredios, não fala baixinho, olha no olho e profere as palavras de comando com uma desenvoltura incrível, ameaçando, esbravejando, enfim um verdadeiro chefe. Neste derradeiro episodio veremos também como Nonato engoliu o amor, ou um pedaço seu, transformando-o em poder de dominação, afinal quando o amor some para ele, fica apenas o ressentimento, um crime passional foi o motivo da sua prisão, mas para se manter lá dentro é preciso menos emoção, é preciso frieza, crueza como o carpacio recusado pelos outros detentos por estar cru, ser carne crua.

É certamente um dos grandes filmes de 2007 e da retomada do cinema brasileiro, a caracterização dos personagens, seu mundo e suas decisões, são seguras, simples por assim dizer. Isso se confunde de certa forma com a apreciação da direção segura do Marcos Jorge em sua estréia, ele nos oferece um filme muito bem produzido, sem enfeites ou tentativas mirabolantes de vanguardismos e, no entanto imprime aspectos geniais durante o filme, pequenos detalhes, simplicidade, a arte da grande cozinha e do bom cinema.

Um comentário:

  1. Estou com este pra ver faz um tempão, Danilo! Mas ainda não cheguei perto. Vontade não me falta, depois de ler seu texto. Se é mesmo como vc disse sobre a direção sem coisas mirabolantes, possuidora de uma boa frontalidade, o filme deve ser mesmo muito bom!

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