terça-feira, 9 de junho de 2009

O Lutador: isto é entretenimento!


Nas touradas as pessoas vão assistir a potência da morte, não necessariamente a morte do touro. Parece que isso nos dar prazer, expiar o sofrimento de outrem, seja apenas para diversão, seja para nos despertar condescendência ou para justificar engajamentos. Espetáculos sangrentos fazem parte do cardápio de diversão humana desde a Roma antiga. No seu ultimo filme The Wrestler(2008),Darren Aronofsky nos apresenta um estudo de caso sobre este tema. O filme trata de um gladiador contemporâneo nosso, dos que não morrem na arena no primeiro combate, daquele tipo que leva uma vida inteira morrendo aos poucos com uma promessa de eternidade. E é isso que o filme nos apresenta.
A câmera focaliza o gigante do outro lado da sala, sentado após o combate, ele descansa, cumprimenta os fãs, entra no carro e segue para casa, em lá chegando não consegue entrar, mesmo com toda sua força e habilidade, Randy the ran não pode dormir em sua cama e descansar após a batalha, ele não pagou o aluguel. A partir daí o filme se dividi em dois, talvez três momentos.
Limite: O herói trágico – e porque não? – segue após mais de vinte anos de uma carreira dedicada a luta livre, de combate em combate, lutando para sobreviver, infelizmente ele não é uma estrela, não é mais. Seus momentos de reconhecimento se resumem a uns poucos aficionados e aos colegas mais novos de profissão. Seu círculo de relações apenas compreende sua identidade pública, no seu território intimo figuram crianças da vizinhança e uma striper que nada fixam. Apenas relações flutuantes o circundam. Durante todo o tempo o diretor opta por trabalhar em planos fechados, closes e câmera na mão, o que nos leva a uma aproximação quase epidérmica com o personagem e seus territórios de trânsito. À medida que o tempo passa, avançamos junto com Randy por toda sua agonia e vazio existencial, sentindo pelo seu aspecto e colocação no mundo que nada daquilo durará mais do que o tempo do filme. A câmera desde o inicio nos coloca na posição de apreciadores da tragédia, em contraponto ao público que assiste aos shows, o que impede qualquer identificação. O diretor opta por não desenvolver em demasia os aspectos dramáticos, colocando apenas em evidência as impossibilidades e tensões no caminho do personagem, fica claro que nenhuma reviravolta é possível. O futuro se configura assim como um declive absoluto. Parece-nos que pelo menos um aspecto do Neo-realismo está aqui presente. A realidade que circunda e atravessa o nosso herói não lhe permite nenhuma reação para além dos falsos golpes e da falsa vitória acertada antes da luta.
Mickey Rourke é focalizado em closes como um homem gentil, um grandalhão boa praça, mas apesar disso a vida começa a aplicar-lhe uma sequência já nos últimos assaltos do combate (vida?), como um touro indomável. Na verdade as coisas o acertam sem aviso prévio, são na verdade meras conseqüência do seu trajeto até então. Com a vida não existe trapaça, nem marcação de cena possivel. Um enfarte, a solidão total que o afastamento das lutas lhe imputa,demarcam uma tênue fronteira pela qual o personagem terá que trafegar, entre a rotina de super-star decadente e a de homem normal. A absoluta ausência de parentes e amigos, são-lhe muito mais dolorosas do que os exercícios exaustivos, a jornada dupla de funcionário free-lance ou os golpes mal aplicados em cima do ringue. Porém, se observarmos o outro longa bastante elogiado do diretor: Requiem para um sonho, há uma similaridade no método. Vidas destinadas aos prazeres de curto prazo, as ilusões de satisfação e segurança – pois não duvidamos que as drogas também sirvam para isso – com a diferença apenas no pano de fundo e na abordagem dos personagens. Antes, jovens curtindo um modo de vida junkie e o sonho distante de riqueza através do tráfico, aqui, um lutador decadente usuário de esteróides que lhe permitem um belo físico (- Só quero ficar grande e forte) para que possa desempenhar seu papel de gladiador contemporâneo. Lembremos por fim da necessidade de ouvir uma enorme platéia a gritar o seu nome. Darren Aronofsky novamente abdica de juízos de valor para construir uma rica cartografia que segue uma estrada de duas vias, para frente e para trás. Para frente na medida em que exerce uma forte critica a nossa sociedade onde a busca da auto realização a qualquer preço emula simulacros perigosos demais para o corpo e para a posição existencial de quem embarca. Para trás porque reconstrói a decadência avançando no cotidiano dos seus personagens e dando a ver os caminhos equivocados que desemboca na auto-aniquilação.
“A punição nos trouxe a paz dele e pelas suas feridas fomos curados”
Pam cita de forma brilhante - enquanto Ram lhe mostra sua feridas de acidente de trabalho - falas da paixão de cristo. O nosso personagem as desconhece, pois já possui sua própria crucificação engendrada por outros pecados mais imanentes. Ele é o novo cordeiro e embora seu sofrimento seja de um tipo diferente daquele outro cristo de Mel Gibson, ele reconhece que o outro é um cara durão, um dos seus. Metalinguagem a serviço de uma avaliação contundente acerca do papel da mídia e da indústria do entretenimento que se prolonga na apropriação da trilha sonora por parte do filme. Todas as músicas usadas no filme acentuam o caráter trágico de suas presenças no mundo, contrastando o espírito festivo das mesmas com a trágica situação de vazio das cenas e do personagem.
Depois do limite e do reconhecimento da própria crucificação e seu conseqüente sofrimento, talvez Darren Aronofsky tenha nos deixado em suspensão ao final. O salto que focalizamos pouco antes do écran tornar-se preto talvez não se configure apenas em morte, pode também estar prenhe da possibilidade de ruptura. Uma desistência ativa do esquema do espetáculo pela personagem da Pam, esta que de raspão já sinalizava com esta vontade. Ponto importante e que talvez nos passe despercebido pelo caráter trágico que o filme apresenta com sua velocidade de aniquilação incrível.
O Encaminhamento de Ram ao matadouro, algo que em outra parte esta associado ao seu trabalho comum,com a diferença de que lá não existia platéia a gritar-lhe o nome. Sua caminhada ao som dos Gun's and Roses em direção a arena, Ram é seu próprio Judas, seu próprio Pilatos. A desistência diante de um mundo que não lhe reconhece, onde ele não é ninguém, só lhe deixa como possibilidade voltar ao velho hábito, onde ele pensa ser amado. Estranha inversão. Nietzsche dizia que ao contrario do que pensa o rebanho a ave de rapina lhe tinha bastante consideração e apreço.
O rosto doce dessa criança que nos oferece sua carinha feliz, que nos afaga com promessas de outro lugar mais confortável do que a dureza do mundo. Ran ao ser reconhecido no mundo normal não agüenta mais (maior golpe sofrido?) e a única solução é se deixar levar pela multidão (ave de rapina?), se refugiando de forma abjeta neste território tão vazio quanto sua própria vida, mesmo que isto lhe custe ela. Por fim aquele corpo imenso que se joga por cima da câmera se identifica enfim com o corpo do entretenimento, carne podre e velha oferecida sempre como a última especiaria a ser degustada, ficamos com os gritos histéricos da platéia...